AMOR E PAIXÃO
Quanto ao Amor, devo acrescentar que NEM SEMPRE ele chega de mansinho.
Por vezes (fala a experiência...), atinge o alvo como um raio e, num ápice, fica-se diferente.
Todos os sentidos mudam --- para melhor. Até o racciocínio é mais lesto. Inclusivamente, investigam-se ideias e
pontos de vista que, antes, não se imaginava que interessassem.
Os horizontes alargam-se e assumem-se responsabilidades, por vezes com um simples encolher de ombros ante as dificuldades esperadas. O medo é submerso em macaréus de contagiante optimismo.
O sol brilha 24 horas por dia... É o paraíso.
Mas eis que chego à minha velha amiga e companheira Paixão.
A Paixão... Como nos conhecemos bem...!
À partida, ela não tem nada a ver com o Amor.
De facto, o étimo --- do latim tardio "passio, passionis" --- significa, pelo lado erudito, "paixão",
"passividade", "mania" e "martírio"; pelo lado popular, "sofrimento".
Paixão é antónimo de "desleixo", "indiferença" e "imparcialidade".
Ou seja, obra que se queira prima e eterna, não se faz sem ela.
--- Queres dizer, então, que a Paixão não se limita a breves momentos?... --- perguntarás tu.
Sim, PODE não se reduzir a isso. Mas já lá chego.
Há quem veja a Paixão como um empecilho.
Por exemplo, o filósofo alemão Emmanuel Kant (1724 - 1804), para quem o racciocíno lógico era tudo, não esteve com
meias medidas e atirou-se à Paixão como gato a bofe.
Segundo ele, a minha amiga não é mais do que uma inclinação emocional violenta, capaz de dominar completamente a conduta humana e de a afastar da desejável capacidade de autonomia e escolha racionais.
Bem, felizmente que nem todos pensam assim... E, para equilibrar os pratos da balança, nada melhor do que um colega e conterrâneo do S.r Kant.
Assim, de acordo com Friedrich Nietzsche (1844 - 1900), a Paixão é um estado em que determinado afecto organiza e orienta toda a difusa emotividade humana numa disposição plena de saúde e vigor.
Ou seja: dá mais genica que o Vinho do Porto...! Ah, grande Frederico, quem pensa assim não é... pronto, à falta de melhor, fica gago.
Claro que os dois pensadores têm razão. A Paixão pode ser o que escreveste, o que eles dizem e muito mais.
De uma coisa estou certo: ela NEM sempre se reduz a breves momentos. Digo-o com o conhecimento de causa que já me permitiu o doutoramento na matéria...
Ela arrebata?
Se arrebata!... Um tornado não faz melhor. Uma pessoa está despreocupada quando, de súbito (e é MESMO súbito; ela nem sabe o que é um "aviso prévio"...) a Paixão arranca-a da sua rotina e leva-a, num remoinho de emoções e sentimentos, até sabe Deus onde...!
Não se justifica?
Não se explica?
Nem precisa!... Alguém sabe porque carga d'água, num dia, lhe apetece bacalhau com grão em vez de frango assado e noutro, precisamente o contrário? Pois, com ela, é a mesma coisa. Dir-se-á que a Paixão é de apetites; e com razão. E dá um prazer TREMENDO a satisfação desses apetites...
Vem sem legendas?
Óbviamente...! Para quê perder tempo a inseri-las quando ninguém as vai ler???
Fulmina?
Quantas vezes...! E os desmaios...? É certo que estão um pouco "fora de moda"; mas continuam a acontecer.
É um ciclone?
Bem, isso é ofensivo. Bote-se lá "tornado" e ter-se-á feito justiça...
Deixa a boca seca?
Sim, como cortiça. E a pobre língua --- a qual é, frequentemente e com urgência, chamada para dar gosto à vida --- a gritar por hidratação...
Pelos arrepiados?
Isso e cabelos em pé, também. Entenda-se: os carecas estão fora da jogada...
Dá vertigem?
Tem dias. Mas, a quem se apaixonar na varanda do Farol do Cabo Espichel, recomenda-se que NÃO olhe para baixo...
Desatina?
Sim, perde-se a razão crítica e lógica num abrir e fechar de olhos. E isso causa algum embaraço? Naaaaaaaaa...
Compulsão?
Sei lá. Eu cá não senti nada...
Aparece e some de repente?
ALTO E PÁRA O BAILE...!
Pode não ser assim. Comigo, NUNCA foi nem será assim.
Não consigo viver sem Paixão. Está-me na medula. Alimenta-me e alimenta-se de mim. Dá-me um prazer inefável. E dói.
A dor é o lado "desagradável". Mas, por estranho que pareça, se não doer, pode ser tudo --- menos Paixão.
Dito de outra maneira: só tem dores de dentes quem tem dentes. E só sofre por amor quem ama. Ainda bem.
Ao contrário do que se pode pensar, a dor --- tal como a saudade --- é constante, mesmo quando o amor é
correspondido.
Excepto quando se dorme, a dor está sempre presente: no trabalho ou na diversão.
Por vezes, quase nem se dá por ela; outras, é lancinante.
É natural estar-se com a pessoa por quem se está apaixonado e sentir-se triste e magoado, com saudade dela --- porque a mente antecipa esses sentimentos que aparecerão em todos os momentos de separação física, mesmo que por segundos.
Porque a Paixão permite que o pensamento se oriente, com a mesma cadência do batimento cardíaco e da respiração, para a imagem da pessoa por quem se está apaixonado .
--- Que exagero!... --- dir-se-á.
Seja. Mas não há nada melhor
.
A Paixão permite que dois seres se fundam num só sem que percam as suas identidades. E, para isso, até podem nem se tocar. Com efeito, a intensidade da energia que brota de ambos é descomunal e permite a geração de campos espirituais onde a fusão é possível.
O ser daí resultante é mais rico e completo que os seus componentes.
Pelo contrário, quem ama sem Paixão (também sei o que isso é...) só pode unir-se a quem ama mas nunca se fundirá com essa pessoa.
A fonte energética do Amor é a Paixão.
Se se tiver em mente o célebre soneto de Camões "Amor é fogo que arde sem se ver(...)", perceber-se-á que ele falava de Paixão, não de Amor.
Mas como, naquele tempo, a única Paixão admissível era a de Jesus, e uma vez que Camões tinha que submeter os seus escritos à Real Mesa Censória, talvez tivesse preferido escrever "Amor" para não se meter em sarilhos...
Pois esse fogo que arde sem se ver é o mesmo que derrete tudo e cria a lava vulcânica. Essa mesma lava sobre a qual assenta a crosta terrestre e que, a miúde, sai aqui e ali, com mais ou menos força destrutiva. Sim, porque a Paixão também destrói.
Para já, destrói a rotina. Fazer planos a médio e longo prazo é para esquecer. E mesmo a curto prazo... Duas semanas, no máximo!
A seguir, destrói o sossego. Dorme-se quando se está bem, não se prega olho quando se sofre, passa-se pelas brasas depois de uma agradável e longa conversa telefónica, tem-se uma noite em branco se, durante um --- ainda que breve --- encontro, algo desagrada à pessoa por quem se está apaixonado. Em suma, a vida passa a ser uma versão desmiolada do "Livro do desassossego"...
Por fim, destrói as relações. Ou melhor, purifica o "livro de endereços". Quando se está apaixonado, a escala de prioridades passa a ser uma pirâmide invertida --- mas, espantosamente, com tanta estabilidade como se não estivesse de pernas para o ar.
A piada está na estabilidade: quanto mais notória for a sua manifestação pública, maior é o escândalo, o ciúme, a inveja. Ou seja, a felicidade tem limites sociais que não convém ultrapassar. Pode-se mostrar, em público que se é feliz, mas de modo "politicamente correcto". Isto é, nada de exageros!...
Porém, o exagero é parte integrante da Paixão. Os adjectivos superlativos devem ter sido criados para ela. Tudo é único e incomparável. E, para quem está apaixonado, não há nada de mais normal!
Por isso, a "lista de endereços" começa a ser limpa de quem não gosta da tal felicidade. Podem-se votar ao esquecimento pessoas com quem se convivia há muito tempo --- e sagrar como amigos íntimos quem der provas inequívocas de apoiar, defender e proteger a felicidade de duas pessoas unidas pela Paixão.
É exactamente aí que eu quero chegar. A Paixão une o Amor para sempre. Ilumina-o com a Luz Eterna.
A maior parte das vezes, lava-o com rios de lágrimas. Mas também o enxuga com brisas de alegria.
Em cada encarnação, procuramos a Paixão para nos apresentarmos mais puros perante Deus.
Ela é a razão da minha Vida --- desta e doutras.
Portanto, para mim, Paixão E Amor são eternos.
Paixão --- substantivo feminino --- é apanágio da Mulher.
Amor --- masculino --- é-o do Homem.
Ao dirigirem-se para a Felicidade Eterna, a Mulher escolhe o caminho; o Homem, o transporte.
Juntos, fundindo-se, transmutam-se. E sobre ambos se estenderá um dia o manto de Deus.